Brasil avança no desenvolvimento de cimento verde

Em poluição, a indústria do cimento só perde para o setor siderúrgico e está entre as que enfrenta os maiores desafios na descarbonização
Centro de coprocessamento de pneus não utilizáveis na fábrica da Votorantim Cimentos em Rio Branco do Sul (PR) — Foto: Divulgação
Brasil avança no desenvolvimento de cimento verde

Naiara Bertão, Valor Econômico – Se ao ler “cimento” você esperava ver uma foto de uma indústria altamente poluente, não será dessa vez. Não que o setor cimenteiro não seja um forte emissor de gás carbônico (CO2), o que é. O concreto, cujo principal componente é o cimento, é responsável, sozinho, por ao menos 7% do gás carbônico (CO2) que vai para a atmosfera, o que é semelhante às emissões totais da Índia. Em poluição, só perde para o setor siderúrgico hoje, mas pode ultrapassá-lo nos próximos anos. Portanto, em escala de dificuldade na descarbonização, a indústria do cimento está entre as que enfrenta os maiores desafios.

Mas a foto desta reportagem, um centro de coprocessamento de pneus na fábrica da Votorantim Cimentos em Rio Branco do Sul (PR), ajuda a ilustras as mudanças que estão ocorrendo nas últimas duas décadas no país e porque o Brasil é hoje referência mundial com a produção de cimento com menos emissão de carbono. Do total de emissões do país, só 2,3% vêm do cimento, segundo o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, contra 7% no mundo.

Em 2019 (último dado), o Brasil gerava 564 kg de CO2 por tonelada de cimento, 12% a menos do que a média mundial (633 kg CO2/t de cimento), segundo a Global Cement and Concrete Association (GCCA), associação internacional da indústria que compila dados de 850 fábricas de 48 empresas do setor no globo, exceto China. Em 1990, o Brasil emitia 700 kg CO2 por tonelada de cimento e o mundo, 750.

“O Brasil esteve à frente nos últimos 20 anos. No início dos anos 2000 a pressão sobre a indústria era incipiente, mas as empresas já tinham visão de longo prazo e entendiam que, cedo ou tarde, a questão climática ia bater à porta de todo o mundo e, portanto, precisavam se adiantar. E isso fez toda a diferença”, afirma Gonzalo Visedo, líder de Sustentabilidade do Sindicato Nacional da Industria do Cimento (SNIC).

A Votorantim Cimentos é hoje uma das brasileiras na vanguarda desta agenda aqui. Entre 1990 (ano ponto de partida utilizado na indústria de cimento) e 2021, a companhia reduziu as emissões de CO2 por tonelada de cimento produzido em suas fábricas em 10 países em mais de 20%, volume que passou de 763 quilos para 597 quilos de CO2 por tonelada de cimento (2021). No Brasil, essa redução foi ainda maior, de 27% – de 771 quilos para 566 quilos de CO2 por tonelada de cimento (2021).

“Como a gente consegue e o que temos feito? Uma das frentes que atacamos é na queima de combustível, etapa chamada de coprocessamento”, explica Álvaro Lorenz, diretor global de Sustentabilidade, Relações Institucionais, Desenvolvimento de Produto e Engenharia da Votorantim Cimentos. “Decidimos, em 2019, desenvolver cadeias de valor e insumos para substituir o coque de petróleo e hoje usamos diversas fontes de energia, como pneus, resíduos de tintas, restos de madeira, caroços de açaí e azeitona, casca de arroz e soja, além de resíduos urbanos”, acrescenta.

Para entender: ao contrário do que se vê em outras indústrias, a maioria das emissões de cimento – cerca de 60% – é gerada no processo de produção do clinquer, a partir da combinação de cálcio, silício, ferro e alumínio moídos e queimados em forno a uma temperatura de 1.500 graus Celsius, e não da eletricidade. Nesse processo, o carbonato de cálcio se recombina e libera dois produtos: óxido de cálcio (que vai compor a fórmula final) e CO2. E para chegar à temperatura necessária, a praxe sempre foi usar combustíveis fósseis para o aquecimento das caldeiras, em especial, o coque de petróleo, que é em parte importado do Golfo do México – além de caro, emite CO2 no transporte marítimo. A energia para esse ‘cozimento, portanto, também gera carbono, o que é responsável por quase 40% das emissões.

A fábrica da Votorantim Cimentos em Rio Branco (PR), a da foto, já queima pneu desde 1991. “Exploramos todas as possibilidades. No caso de pneus, a indústria de produção e importação precisam dar vazão aos pneus inservíveis; firmamos, então, parcerias com associações de fabricantes de pneus e empresas, que também têm interesse na logística reversa”, explica Lorenz.

No caso do caroço do açaí, a fábrica de Primavera, no Pará, já coprocessou 214 mil toneladas em 2020 e 2021. Neste caso, a Votorantim Cimentos fecha parceria com cooperativas que já coletam a fruta para fazer polpa para vender às indústrias alimentar e cosmético. Como 80% do açaí é caroço, o benefício é duplo: menos lixo e mais renda às famílias envolvidas no projeto. Globalmente, a Votorantim Cimentos substituiu 22,4% dos combustíveis por fontes alternativas em 2021. “No Brasil esse índice foi de 26% com a utilização de 1 milhão de toneladas de resíduos em 2021, o que significa a redução de 833 mil toneladas de emissões de CO2 e evitado o consumo de 525 mil toneladas de coque de petróleo”, aponta o executivo.

Essas iniciativas podem contribuir para ela bater sua meta de atingir 53% de substituição térmica no Brasil até 2030, mas não serão suficientes para chegar à neutralidade em poucas décadas. Assim como todas as companhias do setor, é preciso atacar várias frentes ao mesmo tempo.

“As soluções estão concentradas em quatro alavancas, como diferentes matérias-primas, combustíveis alternativos, eficiência energética, e inovação e tecnologia para captura de carbono”, explica Visedo, do SNIC. “Os três primeiros já fazemos, mas temos um limite técnico. Podemos avançar, mas haverá momentos que vamos saturar capacidade”, completa.

A meta no Brasil, alinhada ao plano do Acordo de Paris para limitar o aquecimento do planeta, é chegar a 375 kg CO2/ton de cimento até 2050, uma redução de 33% em relação a 2015. Isso significa evitar a liberação de 420 megatonelada de CO2. Visedo explica que, para dar subsídio técnico para a indústria mitigar essa quantidade de emissões, o SNIC lançou em 2019 o Roadmap Tecnológico do Cimento até 2050, feito em colaboração com a Agência Internacional de Energia (IEA), a International Finance Corporation (IFC) do Banco Mundial, o Conselho Empresarial Mundial para o Desenvolvimento Sustentável (WBCSD) e um grupo de especialistas de universidades e centros tecnológicos do país, coordenados pelo professor e ex-ministro José Goldemberg.

No Roadmap, são apresentadas oito frentes de ação para chegar à neutralidade em carbono até 2050. Uma delas é diminuir o percentual de clínquer no cimento, que ainda depende de regulação porque depende de flexibilização de normas técnicas, e misturá-lo com materiais menos poluentes (fase chamada de adição). A Votorantim, por exemplo, conseguiu produzir na sua fábrica de Pecém (CE) um cimento com 40% de clínquer (o comum é 80%, mas o Brasil atingiu 68%). “Mas não consigo em todo local e nem para toda aplicação. O percentual de clinquer e os materiais que misturo a ele são diferentes para um cimento de um prédio e para uma barragem de usina hidrelétrica, por exemplo”, diz Lorenz.

Para estudos de uso de materiais e construção sustentável foi criado o Hubic, um hub de inovação na Poli, faculdade de engenharias da Universidade de São Paulo, uma parceria técnica da instituição com a Associação Brasileira de Cimento Portland (ABCP) e a SNIC.

Desafio

Um estudo global recém-publicado pelo banco suíço Credit Suisse sobre o setor cimenteiro, aponta que, mesmo com as boas intenções e investimentos das empresas em novas tecnologias – algumas aderiram à meta de neutralização de emissões de gases poluentes até 2050 -, o setor ainda será grande poluidor em 2030. “Apenas uma redução adicional de 13% nas emissões diretas de cimento/concreto é viável no período de 2030-50, já que a “clinkerização” continuará a gerar emissões mesmo se for usado 100% de eletricidade/combustível limpo”, cita o relatório, compartilhando as estimativas de uma empresa líder em materiais de construção.

Segundo Vanessa Quiroga, diretora de Security Research no Credit Suisse México e responsável pela cobertura de cimento, construção e imobiliário, e autora do estudo de descarbonização da indústria de cimento citado, é difícil tornar o concreto verde. “Mesmo em regiões onde várias dessas tecnologias são utilizadas simultaneamente, produtores não têm conseguido fabricar concreto com emissão líquida zero até agora”, diz em entrevista exclusiva ao Prática ESG (Leia Tecnologia e regulação podem ajudar o cimento verde).

A meta da GCCA para atingir o net zero em 2050 é compensar 3,8 gigatoneladas do gás – hoje o setor mapeado emite mais de 2,5 gigatoneladas de CO2 nas próprias operações no mundo. “Embora a indústria do cimento pretenda atingir emissões líquidas de carbono zero até 2050, o caminho provavelmente será bastante desafiador e exigirá inovações substanciais e melhorias tecnológicas”, aponta o banco suíço no relatório.

O caminho para o concreto net zero depende de soluções como a captura de carbono, que deve ser responsável por 59% da redução necessária para 2030-2050. O problema é que essas tecnologias, que passam por comprimir e armazenar o gás, seja para uso ou para isolamento, são caras e ainda pouco desenvolvidas. Ou seja, a indústria, de fato vem avançando, mas seu caminhar rumo ao cimento realmente verde, ainda esbarra em desafios complexos e que dependem de um tempo para serem solucionados.

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